No mundo rural, sobretudo no Nordeste, só existem dois tipos de pessoas: as com caráter e as sem. “Reputação é você fazer em frente às pessoas; caráter é você fazer na ausência delas”, dizem. Ou: “O tempo desmascara aparências, revela a mentira e expõe o caráter”. Palavra densa, “caráter”. Designa cada sinal da escrita e tipografia (letra, número, pontuação etc.).
Para a filosofia, por pleonasmo ou tautologia, “caráter” designa um conjunto de caracter-ísticas relativas à maneira de agir e reagir de um indivíduo ou grupo. Na psicologia, pelo menos para Jacques Lacan, o caráter é aquilo que não se oferece à interpretação. Qual é a origem ou caracter-ística da palavra “caráter“, escrita com sete caracteres? A resposta está na pecuária.
Desde o Neolítico, animais domésticos são marcados. Na Grécia Antiga, “caráter” (χαρακτήρ) designava o ferro utilizado para marcar o gado: o gravador. A marca dava identidade, proteção mágica e pertença ao animal. Em cada ferro havia um sinal ou emblema, por ele produzido ou impresso, daí seu segundo sentido: marca. Em latim, “character” também designava o instrumento e a marca a ferro quente.
“Caráter” designava o ferro utilizado para marcar o gado: o gravador | Foto: Shutterstock
Condenados eram marcados na testa a ferro na Roma Antiga. Levavam à vida o traço indelével, a cicatriz identificadora do crime cometido, visível a todos. Com o tempo, passaram a ser marcados nas mãos e pernas. No Ancien Régime, marcavam-se com “V” ladrões (voleur); com “GAL”, condenados às galeras; com “F”, falsários etc. A prática só foi abolida em 1832.
Com o advento do Cristianismo, o nome do instrumento migrou à caracterização da pessoa e pertença, pela simbologia do batismo. Nele, o batizado recebe a marca da fé, o sinal da cruz, “por caráter indelével” (Cânon 849). Os marcados pelo batismo pertencem a Cristo. Essa marca divina, Dominicus character, ninguém pode tirar, nada pode apagar. Batismo é para sempre. Imprime caráter sagrado, inviolável e santo nas crianças. Batiza-se para a criança “ter caráter”.
Na pecuária, o ferro de marcar, o caráter, está saindo de cena. Em 2024, o governo de São Paulo dispensou a marcação a ferro na face das bezerras para identificar vacinação contra brucelose. Basta um brinco. Recebeu elogios de pecuaristas e ambientalistas, focados no bem-estar animal. O cuidado com o bem-estar animal se reverte em produtividade. Marcar com ferro é prática a ser eliminada. Nada simples com furtos e roubos de gado tão frequentes no meio rural. Há recursos alternativos (tatuagens, brincos, brincos eletrônicos, chips etc.) que não geram sofrimento ou trauma ao animal. É tempo de acabar com a insegurança e o caráter na (e não “da“) pecuária.
Não é simples marcar, quanto mais rastrear, um rebanho bovino com mais de 200 milhões de cabeças. Dos 6 milhões de estabelecimentos agropecuários do Brasil, 2,5 milhões dedicam-se à pecuária. Deles, 1,9 milhão tem menos de 50 cabeças; e 600 mil, mais de 50 cabeças. “Quem planeja o que não executa e depois avalia o que não fez” muge políticas e controles aos governos para os pecuaristas.
Marcar com ferro é prática a ser eliminada. Há recursos alternativos que não geram sofrimento ou trauma ao animal, como tatuagens, brincos, chips etc. | Foto: Shutterstock
O rebanho brasileiro dobrou em relação aos anos 1970. Em três décadas, cresceu 13%; a produção de carne, 108%; e a produtividade por área de pasto, 147%. A área das pastagens diminuiu 16% (Revista Oeste, edição 135). Como crescem rebanho e produção de carne e cai a área das pastagens? Os ganhos de produtividade nas pastagens decorrem de novas variedades de capins, pastos bem manejados, mais produtivos, com maior qualidade nutricional, mais resistentes a seca, cigarrinhas e outras pragas, além da suplementação mineral, proteica e de outros aditivos. Ainda há muito a avançar: apenas metade do rebanho bovino recebe suplementação mineral adequada.
No país, em graus variados, aumentou a natalidade nos rebanhos, diminuiu a mortalidade, houve redução na idade de abate e crescimento no desfrute do rebanho. A qualidade da carne, do couro e de outros produtos da pecuária melhora, bem como a de circuitos de distribuição de insumos genéticos, nutricionais e farmacêuticos, e de sistemas de gestão.
No mundo não tem sido assim. O rebanho mundial, outrora superior a 1 bilhão de cabeças, hoje é inferior a 950 milhões. E segue em queda. O rebanho brasileiro é o maior e representa 22% dos bovinos ruminando e mugindo mundo afora. Depois do Brasil, em efetivo decrescente, estão Índia, Estados Unidos, China, União Europeia, Argentina e Austrália.
Em 2023, pela estimativa do IBGE, foram abatidos mais de 34 milhões de bovinos (dados formais nos circuitos de comercialização). A Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carne (Abiec) estima valores mais elevados com dados informais de abates em fazendas, autoconsumo etc.
Em três décadas, o rebanho brasileiro cresceu 13%; a produção de carne, 108%; e a produtividade por área de pasto, 147%. Já a área das pastagens diminuiu 16% | Foto: Shutterstock
A pecuária é exemplo de economia circular e upcycling, como ilustra a Associação Brasileira de Reciclagem Animal (Abra). Por exemplo: como por aqui os bois têm quatro patas, o abate gerou mais de 140 milhões de cascos, destinados à produção industrial de farinhas, pó de extintor, adesivos, condicionador, xampu, papel de parede, compensados e laminados, vernizes, tintas, mordedores para cães etc. (Revista Oeste, edição 115).
Do abate bovino em 2023 resultaram 10,8 milhões de toneladas de carne (TEC). Desse total, 72% atenderam ao consumo interno. O volume exportado foi recorde: mais de 2,5 milhões de toneladas. Ainda assim, segundo a Associação Brasileira de Frigoríficos (Abrafrigo), a receita das exportações de carne bovina para 173 países caiu de US$ 13 bilhões em 2022 para US$ 10 bilhões em 2023. O preço da carne bovina despencou de US$ 5,7 mil por tonelada em 2022 para US$ 4,6 mil por tonelada em 2023.
Cinco estados respondem por 76% da exportação de carne bovina. São Paulo lidera com 575 mil toneladas (23%). Seguem Mato Grosso, com 520 (21%); Goiás, com 344; Mato Grosso do Sul, com 243 (9,5%); e Minas Gerais, com 229 mil toneladas (8,5%).
Dadas a dimensão da pecuária e a estruturação profissional do setor, um excedente da ordem de um quarto da produção faz do Brasil o maior exportador mundial de carne bovina. E o mundo quer mais carne.
Em 50 anos, o consumo de carne quase dobrou no planeta: de 34 milhões de toneladas (1970) para cerca de 58 milhões (2022). Isso resulta do crescimento da população de 3,7 bilhões de pessoas para mais de 8 bilhões, da urbanização e da renda, sobretudo na Ásia (Revista Oeste, edição 166). Para a OCDE e a FAO, a produção mundial de carne bovina nos próximos dez anos alcançará 77,8 milhões de toneladas.
Entre 2013 e 2023, o consumo de carne na China cresceu 70%, de 6,5 milhões para 11 milhões de toneladas. Na Índia cresceu 42% e na Europa caiu 14%. Dada a dimensão da população, o consumo chinês é baixo, de cerca de 7 quilos por habitante por ano. E cresce. Os cinco maiores países consumidores de carne são Argentina (47,5 kg/hab/ano), Zimbábue (41 kg/hab/ano), Estados Unidos (38 kg/hab/ano), Brasil (37 kg/hab/ano) e Austrália (29,5 kg/hab/ano).
Em março de 2024, a China habilitou 24 abatedouros de bovinos, um estabelecimento bovino de termoprocessamento e um entreposto. Os frigoríficos JBS, BRF, Marfrig e Minerva ganharam, somados, cerca de R$ 3,8 bilhões em valor de mercado na B3 só com essa decisão da China. Quanto ganharão os pecuaristas?
Em 50 anos, o consumo de carne quase dobrou no planeta: de 34 milhões de toneladas (1970) para cerca de 58 milhões (2022) | Foto: Shutterstock
“Pecuária” vem da raiz latina “pecua” (termo coletivo para gado, rebanho), a mesma na origem de “pecúlio”. Na Roma antiga, pecúlio era a pequena parte do rebanho dada em pagamento ao escravo responsável pela sua guarda, por oposição ao peculiar: a parte própria do rebanho do proprietário. A palavra evoluiu para o sentido de específico ou próprio. “Pecúnia” vem da mesma raiz. Na origem, designava riqueza em animais, depois em dinheiro e, por extensão, moeda e honorários, primitivamente pagos com animais. Com o tempo, “pecuniário”, significado latino de rebanho, estendeu-se ao dinheiro e à riqueza (Revista Oeste, edição 117).
A pecuária é altamente empregadora e distribuidora de riqueza. Demanda mão de obra intensiva, principalmente em frigoríficos, e contribui com mais de 2 milhões de empregos. Da população empregada no Brasil, 2,5% estão na cadeia da pecuária. São cerca de R$ 23 bilhões pagos anualmente em salários. Setores dependentes da carne bovina, não internos à cadeia produtiva, pagam outros R$ 35 bilhões. Tudo isso vai para consumo, contratação de serviços, compra de bens móveis e imóveis, e impacta positivamente a economia local e nacional. Ainda assim, “carimbos” e burocracia não faltam a enquadrar e infernizar a pecuária.
A pecuária foi o grande vetor de ocupação territorial e de desenvolvimento das regiões do Brasil. Pecuaristas têm caráter e coragem. Pegam touro a unha. Enfrentam cartéis, queda no valor da arroba, relações perversas entre governo federal e grandes frigoríficos
Etimologicamente, a palavra “carimbo” teve em português um caminho inverso à da “caráter”. Cortes e escarificações são feitos no rosto de crianças e adultos em diversas culturas africanas, como sinais de pertença a uma etnia ou grupo clânico. Os cortes deixam cicatrizes bem visíveis. Peles negras produzem mais fibroblastos na cicatrização e geram queloides, cicatrizes escuras, elevadas, mal definidas. Em quimbundo, chamam-se kirimbu. Escravos embarcados recebiam marca a ferro, sinal de pagamento dos impostos devidos. Essas marcas também foram chamadas de kirimbu. O vocábulo, incorporado à língua portuguesa, passou a denominar o acessório utilizado para marcar escravos. E estendeu seu nome a outros marcadores de papéis e pergaminhos, para honra e glória da burocracia.
A ofensiva contra a pecuária vai de indivíduos a blocos econômicos. Por vezes, auditores, licenciadores, fiscais, inspetores etc. com seus “carimbos” atacam os pecuaristas em nome do “meio ambiente”, do alto de uma autonomia funcional e burocrática usada em detrimento do interesse público. A União Europeia a cada dia exige mais “carimbos”, certificados e procedimentos a países tropicais para atender a seu Green Deal, em crise e recusado por seus próprios agricultores. Narrativas midiáticas e escolares criminalizam pecuaristas, baldoam sua reputação.
A pecuária foi o grande vetor de ocupação territorial e de desenvolvimento das regiões do Brasil. Pecuaristas têm caráter e coragem. Pegam touro a unha. Enfrentam cartéis, queda no valor da arroba, relações perversas entre governo federal e grandes frigoríficos. Caráter não é sinônimo de reputação. Caráter descreve qualidades distintivas de um indivíduo ou grupo. Reputação descreve opiniões de outros sobre um indivíduo ou grupo. O caráter é interno e autêntico. A reputação é externa e percebida.
Se lacração, patrulhamento ideológico, consórcios midiáticos e criminosos atentam contra a imagem e a reputação de pecuaristas, seu caráter segue inabalável. Eles trabalham pela qualidade com foco no produtor e no consumidor, como no Grupo Pecuária Brasil (GPB). Seguem plataformas, sugestões de políticas e tecnologias (GTPS, Mesa Brasileira da Pecuária Sustentável, Pecuária Sintrópica…). Pecuaristas investem, conectam, fazem festas, rodeios, leilões, tocam o berrante e tratam os ataques como conversa mole para boi dormir.
A pecuária é altamente empregadora e distribuidora de riqueza | Foto: Shutterstock
Fonte: Revista Oeste - O caráter do pecuarista - Revista Oeste